segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Ir a Jaguarão e descobrir o resto do mundo


Texto de Aldyr Garcia Schlee*

Ir a Jaguarão não é fácil; mas compensa.

Antes, quando eu era um guri, ir a Jaguarão era voltar para casa: de trem, carro-motor, avião ou barco a vapor. Chegava-se (do Brasil ou do Uruguai) com o coração apertado pela magia do reencontro e o medo do desencontro, ao adivinhar os velhos telhados despontando entre campo e arvoredo; e logo logo, ao divisar o casario estendido igual dos dois lados do rio - a Ponte no meio -, com a esperança de que aqui e ali ainda estivessem bem resguardados todos os afetos recuperáveis a cada regresso.

Hoje não se vai nem se vem mais a Jaguarão num monomotor Focker, da Varig. O vapor “Cruzeiro” já não apita na curva do rio, trazendo-nos de Porto Alegre ou levando-nos a Pelotas. Os trilhos, aqui - ou sobre três quilômetros de ponte, Uruguai adentro -, enferrujam inúteis na falta dos trens Ganz-mávag que chegavam de Montevidéu duas vezes por dia; e na ausência do inesquecível carro-motor, que saía tlaquetlaqueando pelos campos planos, nos injustificáveis meandros de seu caminho de aço, rumo a Rio Grande.

Ir a Jaguarão tornou-se difícil? - perguntará o leitor.

Não! - respondo eu. Mas, como viagem, perdeu definitivamente o encanto. Vai-se e vem-se sem sobrevôo e sem aterrissagem, sem atracação e sem apitos, sem fiambres e sem vagão-restaurante, sem tlaquetlaques e sem bolos de coalhada. Por isso, chega-se a Jaguarão sem nada, na forma a que uma equivocada política de transportes nos condenou: apenas por via rodoviária, o que implica geralmente em viajar de automóvel ou ônibus (são trezentos e tantos quilômetros de Porto Alegre; outros mesmos trezentos e tantos desde Montevidéu), por prolongados espaços despovoados, com algum gado aqui um pouco ali menos lá adiante; alguma granja de arroz; alguma soja; e quem sabe até inesperadas melancias e improváveis avestruzes. Enfim: chega-se a Jaguarão, no perder-de-vista da amplitude circular dos sempre distantes e inatingíveis horizontes do pampa; mas como vale a pena!

Jaguarão está ali, a meio caminho de Montevidéu e de Porto Alegre, entre dois pequenos cerros - o da Enfermaria e o do Cemitério - e o rio que lhe dá nome e que separa e une a cidade a Río Branco, do outro, no Uruguai. Divide (ou soma) com Río Branco a magia particular das luminosas e surpreendentes cidades da fronteira uruguaio-brasileira, de acentuada marca fronteiriça no traçado quadricular de suas ruas, na preservada unidade de sua arquitetura e na comunhão de costumes de seus habitantes. Distingue-se das outras, contudo, por causa do sortilégio paradoxal de sua ponte superlativa, que ao mesmo tempo liga e separa dois mundos iguais; e que desafia o visitante, ante sua espetacular monumentalidade de meia légua, a esgotar qualquer repertório de adjetivos.

Ir a Jaguarão e Río Branco é ir ao exterior sem sair do interior, é ir ao estrangeiro sem ser forasteiro, é sentir-se cosmopolita dentro de casa. De certa maneira, é descobrir o resto do mundo no próprio espelho, ante a conformidade das margens opostas e a repartição dos arcos da Ponte.


Sobre o cimento da belíssima Ponte Internacional Mauá, bem no meio do rio, havia um risco vermelho, separando Brasil e Uruguai: botava-se um pé aqui, outro lá, além do risco - e estava-se ao mesmo tempo nos dois países. Hoje, o risco foi apagado e substituído por uma placa; mas a cada ida e a cada volta, a cada troca de lado, a cada mágica travessia, opõem-se e complementam-se sobre a ponte o perto e o distante, o nosso e o deles, assumindo-se ante cada um de nós, em nós mesmos, o outro.

Ao entardecer, o sol aparecido no Brasil começa a desaparecer no Uruguai: do lado de cá, o leitor descerá até o cais de Jaguarão e poderá se deslumbrar com o espetáculo de cores e luzes de um inigualável pôr-do-sol varado sobre o rio, entre oito escurecentes e majestosos arcos da Ponte; do lado de lá, o leitor estará num banco da calle costaneira de Río Branco, e verá a Ponte toda dourando-se de sol e incendiando-se esplendorosa e repetida no espelho das águas.

* O escritor gaúcho Aldyr Schlee, nascido em Jaguarão, publicou 20 livros, seis deles de contos. No último ano lançou o livro “Os limites do impossível, Contos Gardelianos.”
Mas de sua história consta uma invenção identificada em qualquer canto do mundo e que faz borbulhar de orgulho a torcida brasileira: Aldyr é o feliz criador do uniforme verde e amarelo da Seleção Brasileira de Futebol.

O leitor terá chegado de manhã. Terá visto logo, nos arrabaldes, modestas casas com fachadas altas e telhados inclinados para trás, numa meia-água muito comum dos dois lados do rio - a que chamam “cachorro sentado”. Terá chegado até à Praça, ao largo da Matriz, quem sabe ao Hotel; e terá se admirado da beleza dos casarões de altas portas e tantas e tantas sacadas - que constituem ali o mais admirável e bem conservado conjunto de arquitetura eclética do Rio Grande do Sul.

O leitor contará dez sacadas na fachada do Clube Harmonia; doze, na do Jaguarense. Mas precisará encontrar um guia, quem sabe no Instituto Histórico e Geográfico, quem sabe na Casa de Cultura, para poder visitar a cidade, chegar ao museu Carlos Barbosa, à Igreja da Mi-nervina (e saber coisas, que todos sabemos, os jaguarenses; e que contamos gostosamente, mas não escrevemos). O leitor conhecerá o Teatro, as ruínas da Enfermaria, portas e portas de descomunal escultura; e admirará quantas fachadas se lhe apresentarem (o medo que se tem, em Jaguarão, é que fiquemos sempre num turismo de fachada).

Depois o leitor irá a Río Branco. Atravessará a Ponte obrigatoriamente a pé, para melhor apreciar o rio, para melhor sentir o sortilégio da ponte, e para logo - a passo, no mais - deparar-se com o outro lado e, logo logo, ver tudo de lá para cá.

Em Río Branco o leitor chegará por uma rampa da Ponte e irá a uma quesería e comprará queijos das mais variadas procedências e qualidades; comprará morrones dulces em conserva e os inigualáveis dulces de leche Conaprole - com chuno ou sin chuno. Mas deverá dar um jeito de conseguir carona ou tomar um velho ônibus para ir até a La Cuchilla, que é a parte mais alta da cidade, lá na continuação da Ponte. Em La Cuchilla, não se pode deixar de conhecer a Estação Ferroviária, dar uma volta na Praça, comprar jornais no Kiosko e provar masitas, uma torta pastaflora e uma pascualina, na Confiteria Nueva Iberia; e o leitor saberá chegar à calle Virrey Arredondo para desfrutar dessas delícias.

Se o dia estiver bonito, valerá a pena dar um jeito de ir ao balneário Lago Merín, a 20 quilômetros de Rio Branco: uma praia uruguaia banhada pela Lagoa Mirim - patrimônio da humanidade - com Cassino e a possibilidade de se comer, dependendo da época, um pintado à jaguarense ou uma traíra recém pescada.

À noite, haverá tempo para voltar a La Cuchilla e dirigir-se ao “Tacuarí” (algumas quadras depois da Ponte, à esquerda), pedindo ao Acuña, dono e assador, nada mais do que um petit-entrecot - que sobressairá do prato e, a cada bocado, justificará o fascínio daquele modesto restaurante de tiras de plástico na porta de entrada, havendo de impor definitivas certezas sobre a excepcional qualidade da carne e da parrilla uruguaias. O acompanhamento se fará com pão graseoso, cerveja Patricia e, dependendo da sorte, com as coplas de algum guitarreiro desgarrado.

De regresso a Jaguarão, é obrigatório voltar-se pelo trecho da Ponte que liga as duas partes de Río Branco, para ter o privilégio de flagrar a cidade brasileira descobrindo-se na sua própria iluminação, do outro lado do rio - e crescendo contra o céu escuro.

Depois, basta dormir e sonhar; na certeza de que ter ido a Jaguarão (e Río Branco) é não ter passado em vão pela vida.


Agora, se o leitor sabe que em Río Branco há um duty-free shop com meia dúzia de excelentes lojas com ar condicionado, vendendo a dólar produtos de todo o mundo; e deseja ir até lá só para fazer compras, essa é uma boa pedida. Mas, por favor, não entre em Jaguarão: siga até à última rua, ao fim da estrada, dobre à esquerda, em direção à Ponte sem olhar para os lados; atravesse a Ponte sem se importar com o rio; desça à direita, pela rampa, sem pensar em nada; e vá de loja em loja comprar o que quiser e puder.

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